Virgílio - O Homero romano
- campusaraujo
- 13 de mar. de 2024
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Atualizado: 5 de fev.

Publius Virgilio Marone ou simplesmente Virgílio (15 de outubro de 70 a.C. - 21 de setembro de 19 a.C.), considerado um dos maiores, senão o maior poeta da Roma Antiga, pôs em versos os cantos dos pastores, o trabalho dos agricultores e as façanhas dos heróis e deu-nos respostas que não são certezas, mas questões e dúvidas profundas sobre o homem, o sentido da história e a possibilidade de justiça.
Virgílio testemunhou algumas mudanças cruciais na história do Império Romano. Nas suas obras, Virgilio demonstrou não só a capacidade de captar a sensibilidade do seu tempo, mas também de possuir um profundo conhecimento da retórica e da alma humana. Inspirou escritores e filósofos ao longo dos séculos e tornou-se objeto de curiosidade, estudo e emulação (sentimento que leva o indivíduo a tentar igualar-se ou superar outro indivíduo) que o tornaram imortal em todos os aspectos.
Os especialistas têm grande apreço pela sua poesia, não só pela musicalidade e dicção dos seus versos e pela sua habilidade em construir uma obra intrincada em grande escala, mas também pelo que revela sobre a vida e o comportamento romano. Foi educado em Cremona, Milão e Roma, treinado em retórica e filosofia.
Juntamente com seu antecessor Homero e seu sucessor Dante Alighieri, formariam os três principais pilares da poesia épica onde brilha como um mestre do hexâmetro dactílico, uma forma de verso usada pela primeira vez pelos antigos gregos. Foi, para Dante, um mestre do estilo e do pensamento e o ápice da perfeição humana.
As Geórgicas
As Geórgicas é um poema didático em quatro livros que exalta a vida agrária e a conexão entre o homem e a natureza. Escrito sob a proteção de Augusto, celebra o trabalho rural como base da prosperidade romana e aborda agricultura, viticultura, criação de animais e apicultura. Virgílio combina ensinamentos práticos com reflexões filosóficas e mitológicas, destacando a harmonia entre esforço humano e forças naturais. A obra também reflete o desejo de paz e ordem após as guerras civis, idealizando o campo como espaço de renovação moral e espiritual. São uma ode ao trabalho e à simplicidade virtuosa. |
Contexto histórico e político
Virgílio viveu numa época de grandes mudanças na história de Roma. Além de sua importância na literatura, ele também desempenhou um papel significativo na política romana. Foi contemporâneo de Júlio César, assassinado em 44 a.C., e de Otaviano (Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus), que se tornou o primeiro imperador de Roma em 27 a.C. À medida que a República Romana se aproximava do fim, a situação política e militar na Itália era confusa e muitas vezes calamitosa.
A Primeira Guerra Civil Romana irrompeu quando os líderes das duas facções que disputavam o controle do Senado Romano, optimates e populares, Lúcio Cornélio Sula e Caio Mário respectivamente, competiram pela honra de liderar a guerra contra Mitrídates VI, rei do Reino do Ponto, que havia invadido a província da Ásia e assassinado milhares de romanos. Inicialmente Sula conseguiu o respaldo do Senado para liderar a guerra, mas os populares anularam a decisão recorrendo diretamente à Assembleia da plebe, que outorgou o comando a Mário.
A Segunda Guerra Civil Romana, também conhecida como Guerra Civil Cesariana, ocorreu entre 49 a.C. e 45 a.C.. Foi o confronto pessoal de Júlio César com a facção tradicionalista e conservadora do Senado, liderada militarmente por Pompeu Magno. Os exércitos de César avançaram para o sul da Gália, cruzaram o rio Rubicão e deram início à série de guerras civis que terminariam em 2 de setembro de 31 a.C., na batalha naval de Áccio (Actium), na Grécia, entre a frota de Marco Antônio apoiada pelos barcos de guerra da rainha Cleópatra do Egito, e a frota de Otaviano, que obteve a vitória decisiva.
O ódio e o medo da guerra civil são poderosamente expressos tanto por Virgílio como por seu contemporâneo Horácio. A chave para uma compreensão adequada da Era Augusta e dos seus poetas reside, de fato, numa compreensão adequada da turbulência que precedeu a Paz de Augusto.
Virgílio era um defensor leal de Augusto e seu trabalho era visto como uma ferramenta para promover os valores romanos e o patriotismo. Ele conquistou o respeito e a admiração da população graças à sua generosidade e ao seu compromisso com a sociedade.
A vida de Virgílio
Virgilio nasceu na zona rural de Mântua, em 70 a.C. Biografias clássicas, baseadas em lendas e inferências extraídas de sua obra, bem como da do próprio Horácio, descrevem-no como vindo de uma modesta família de camponeses, intimamente ligada à terra. Seu amor pelo campo e pelas pessoas que o cultivavam dá cor à toda a sua poesia.
Educado no Liceu de Cremona, Virgilio obteve a toga masculina aos quinze anos. Em Milão, estudou retórica em 53 a.C. e se aprofundou em latim, grego, medicina e matemática. Adquiriu um vasto conhecimento dos autores gregos e romanos, especialmente dos poetas. Sabe-se que um de seus professores foi o epicurista Siro, talvez por isso a filosofia epicurista se reflita substancialmente em sua poesia inicial. Gradualmente se aproxima do estoicismo. Em Roma, estudou a arte da eloquência com o objetivo de se tornar advogado.
Sua vida, porém, estava destinada a tomar um rumo diferente. Ele percebe isso quando não consegue abrir a boca no primeiro discurso público, devido à timidez e a alguns defeitos de pronúncia que o constrangiam. Depois disso, abandonou os estudos de oratória para se dedicar apenas à filosofia, à medicina e à matemática. Em 42 a.C., mudou-se com toda a família para Nápoles onde frequentou a escola epicurista de Filodemo e Siron. Lá ele conheceu muitos intelectuais, políticos e artistas, incluindo Horácio.
Em 42 a.C., após a derrota de Bruto e Cássio, assassinos de Júlio César, os soldados desmobilizados dos vencedores estabeleceram-se em terras expropriadas e a propriedade de Virgílio, perto de Mântua, foi confiscada. Virgílio explora as várias emoções que cercam essas apropriações e outros aspectos da vida rural nas Éclogas, seu primeiro grande poema, que aborda as maravilhas e os problemas do Império Romano.
A vida de Virgílio foi inteiramente dedicada à poesia. Ele não desempenhou nenhum papel na vida militar ou política e nunca se casou. A primeira metade de sua vida foi a de um estudioso e quase recluso. À medida que sua poesia lhe rendia fama, ele conquistava a amizade de muitos homens importantes. O entusiasmo de um provincial por Roma é visto na primeira Écloga, em que o pastor Títiro conta a sua recente visita à capital e o seu espanto perante os seus esplendores.
A vida intelectual da sua época foi florescente e rica. Para alguns, semelhante à dos salões e círculos franceses dos séculos XVII e XVIII. O jovem mantuano torna-se então um destinatário primoroso da atividade dos círculos literários cujos primeiros animadores foram poderosos como Cipião Emiliano e o fabuloso amigo íntimo de Augusto e de Horácio.
Algo maior do que a Ilíada
Outro poeta latino, Sexto Propércio, anunciou no período em que Virgílio compunha a Eneida que "algo maior que a Ilíada estava para nascer". Sua profecia virou clássico por excelência, o livro escolar oficial, e Virgílio tornou-se verdadeiramente o Homero Romano, o modelo com o qual todo escritor subsequente necessariamente teve de se comparar. Os versos de Virgílio podem ser encontrados nas paredes de Pompeia.
Eneida
Eneida é um épico latino em doze livros que narra as aventuras de Eneias, herói troiano destinado a fundar Roma. Inspirado em Homero, combina a grandiosidade de Ilíada e Odisseia, misturando ação bélica e jornadas épicas. Eneias enfrenta desafios impostos pelos deuses, incluindo o amor trágico de Dido, rainha de Cartago, e batalhas sangrentas na Itália. A obra celebra os ideais romanos de dever, coragem e piedade (pietas), alinhando-se ao projeto político de Augusto. Mais que um relato heroico, é uma reflexão sobre o sacrifício e a construção de um império que imortaliza Roma como destino divino. |
Carreira literária de Virgílio
Algumas das primeiras poesias de Virgílio podem ter sobrevivido numa coleção de poemas atribuídos a ele e conhecida como Apêndice Vergiliana, mas é improvável que muitos deles sejam genuínos. O Catalepton, consiste em quatorze poemas curtos, alguns dos quais podem ser de Virgílio e outros podem ser de poetas posteriores.
As Bucólicas ou Éclogas
Sua primeira obra é as Bucólicas (Canções dos Pecuaristas) ou Éclogas, uma coleção de dez poemas em hexâmetros pertencentes ao chamado gênero pastoral, inaugurado por Idílios, do grego Teócrito, compostos entre 42 a.C. e 37 a.C. A obra foi escrita entre os 28 e os 31 anos do autor e teve sucesso imediato. Virgílio entrou no círculo dos Mecenas, o grupo de poetas e intelectuais próximos do novo senhor de Roma, Otaviano Augusto.
Ele retoma o tema da idealização do campo, combinando-o com o da violência e das dificuldades do contexto sociopolítico em que se encontrava pessoalmente imerso. O desejo de viver num mundo árcade caracterizado pela naturalidade, simplicidade e harmonia, leva os poetas camponeses a se refugiarem numa realidade diferente do ambiente caótico de Roma. Embora, nos séculos anteriores, fosse comum os leitores encontrarem trechos da autobiografia de Virgílio nas Éclogas, os estudiosos rejeitam em grande parte o esforço de tentar identificá-lo com personagens de sua poesia.
O mundo sereno e pacífico das Bucólicas, porém, não está completamente isolado numa atmosfera de sonho, perturbado apenas por problemas amorosos. Até os pastores sofrem as consequências dramáticas das guerras civis, durante as quais a obra foi escrita. É o caso do primeiro bucólico que apresenta o diálogo entre o pastor Títiro que desfruta a paz do mundo dos campos e dedica-se ao ócio e ao canto e Melibeo que abandona esse mundo porque a suas terras foram confiscadas como resultado das guerras. Acredita-se que a quinta écloga sobre a morte de Dáfnis, rei dos pastores, tenha alguma relação com a morte de Júlio César, ainda recente na época em que a obra foi escrita.
Merece destaque a famosa Écloga IV, um poema que profetiza em termos sonoros e místicos uma criança nascida de uma Virgem, que trará de volta a Idade de Ouro, banirá o pecado e restaurará a paz. Foi claramente escrito numa determinada época (41-40 a.C.) em que as nuvens da guerra civil pareciam dissipar-se. É mais provável que Virgílio se refira a um filho esperado de Marco Antônio e sua esposa Otávia, irmã do imperador Otaviano.
Em termos simbólicos, apresenta uma visão de harmonia mundial que, em certa medida, estava destinada a ser realizada sob Augusto. A passagem tem sido muitas vezes interpretada como uma espécie de antecipação da vinda de Jesus Cristo que, naturalmente, ainda é muito debatida. Entretanto, levou Virgílio a ser considerado com respeito e interesse pela Igreja.
Na Antiguidade, acreditava-se amplamente que esses poemas expressavam alegoricamente a perda da fazenda de sua família, quando os soldados veteranos de Antônio e Otaviano foram reassentados após a Batalha de Filipos, em 42 a.C. Também se acreditava, posteriormente, que ele recuperou sua propriedade por meio da intervenção de seus amigos poderosos.
O certo é que os poemas são baseados na própria experiência de Virgílio, seja em relação à sua fazenda ou às de seus amigos e expressam, com um comovente pathos (qualidade que estimula o sentimento de piedade ou tristeza) que passou a ser considerado especialmente virgiliano, a tristeza dos despossuídos. As Bucólicas tornaram-se uma obra emblemática da poesia pastoral e influenciaram poetas como Dante Alighieri, Shakespeare e John Milton.
A gênese do realismo clássico
Eneias era considerado um exemplo de virtude e pietas, termo relacionado à "piedade" inglesa que transmite um sentido complexo de dever e respeito pelos deuses, pela família e pela pátria. Apesar disso, ele se debate entre fazer o que quer como homem e fazer o que deve ser feito como herói virtuoso. Isso faz de Eneias um personagem mais realista do que os heróis de poemas mais antigos, como Odisseu. Virgílio abriu o caminho para poetas romanos posteriores como Sêneca, estabelecerem as bases do realismo clássico. |
As Geórgicas e a restauração da vida agrícola da Itália
As Geórgicas, compostas entre 37 e 30 a.C. (período final das guerras civis), são um excelente apelo à restauração da vida agrícola tradicional da Itália. Foi publicada por volta de 29 a.C., quando o poeta tinha pouco mais de quarenta anos. Em quatro livros, ele passa do mundo dos sonhos dos pastores para o mundo real dos agricultores e criadores. Inspirado no poema De rerum natura, de Lucrécio, é uma espécie de ‘manual’ de poesia, com conselhos sobre o cultivo dos campos, a plantação de árvores, a criação de gado e o cuidado com as abelhas.
Escrito mais uma vez em hexâmetros, mas mais próximo do estoicismo do que do epicurismo, ao mesmo tempo se enquadra na tentativa histórica de Otaviano Augusto de restaurar e inovar a cultura, a sociedade e a moral romanas após sua ascensão ao poder, ainda ligado à instituição do triunvirato, mas que já lança as bases do seu império das décadas seguintes.
É por isso que, entre os conselhos para a vida camponesa, as digressões descritivas e as reflexões sobre a vida e a morte do autor, é dedicado um amplo espaço a um modelo de divisão da sociedade, explorado em profundidade e elogiado por Virgílio com uma perspectiva propagandística.
Otaviano teve a oportunidade de lê-lo, em 29 a.C. e ouvi-lo, recitado pelas vozes de Virgílio e Mecenas. Foi então que compreendeu que poderia confiar ao poeta mantuano um projeto literário ainda mais ambicioso, um poema épico fundacional (Eneida) para celebrar os valores da vida romana e dar novo prestígio à gens Iulia da qual descende o novo príncipe de Roma.
As Geórgicas, na forma, é didática, mas, como disse Sêneca: “foi escrita não para instruir os agricultores, mas para encantar os leitores”. A instrução prática é apresentada com uma visão vívida da natureza e intercalada com digressões poéticas altamente elaboradas sobre tópicos como a beleza do campo italiano e a alegria dos agricultores quando estão reunidos.
A forma literária serve também para falar de temas mais profundos como o significado e o valor do trabalho humano, o papel da poesia na sociedade e as mudanças em curso no mundo político romano. Augusto, de fato, venceu as guerras civis, e as Geórgicas, com a sua exaltação do pequeno agricultor trabalhador, apoiam a restauração dos valores romanos tradicionais que caracterizam o novo regime.
Mas seria um erro acreditar que são simples poemas de propaganda política. De forma deliberadamente problemática, Virgílio alterna partes em que exalta os ideais do novo regime com outras em que deixa transparecer o mais profundo pessimismo sobre o real valor desses ideais. Ele era membro do que se poderia chamar de círculo da corte, e o seu desejo de ver a sua amada Itália restaurada às antigas glórias coincidiu com a exigência nacional de repovoar as terras e diminuir a pressão sobre as cidades.
Augusto estava ansioso por preservar as tradições da república e as suas formas constitucionais, mas na verdade era o único governante do mundo romano. Ele usou o seu poder para estabelecer um período de paz e estabilidade e esforçou-se por despertar nos romanos um sentimento de orgulho nacional e um novo entusiasmo pela sua religião ancestral e pelos seus valores morais tradicionais de bravura, parcimônia, dever, responsabilidade e devoção à família.
A Eneida, o épico nacional de Roma
A Eneida, última obra escrita por Virgílio é provavelmente a mais famosa. Considerada a obra-prima indiscutível, é um poema épico em hexâmetros, dividido em doze livros. O tema escolhido deu-lhe duas grandes vantagens: a data e o tema eram muito próximos dos da Ilíada e da Odisseia de Homero, para que pudesse remodelar episódios e personagens do seu grande antecessor grego. A segunda é que ele poderia ser relacionado com o mundo contemporâneo de Augusto, apresentando Eneias, príncipe de Troia, como o protótipo do modo de vida romano. Por meio do uso de profecias, visões e artifícios ou das origens dos costumes e instituições contemporâneas, poderia prenunciar os acontecimentos reais da história romana.
A presença de Virgílio na cultura ocidental
Virgílio é uma das figuras centrais da cultura ocidental, com impacto profundo na literatura, filosofia e artes. Sua Eneida tornou-se símbolo do ideal romano, influenciando autores como Dante Alighieri, que o escolheu como guia em A Divina Comédia, associando-o à razão e à sabedoria clássica. Sua obra também moldou a visão de heroísmo, dever e destino na tradição europeia. Poetas renascentistas, iluministas e românticos revisitaram sua poesia, enquanto seus temas de conexão com a natureza em As Geórgicas inspiraram reflexões sobre ecologia e ética. Virgílio transcende o tempo como arquétipo do poeta visionário e defensor da harmonia entre homem e cosmos. |
O poema composto por mais de 10.000 versos, conta a história de Eneias, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, que, após a destruição de Troia, parte com seu filho Ascânio (também chamado Lulus) para a região do Lácio, onde se casa com uma princesa local da qual descenderão os futuros fundadores de Roma.
Na viagem, uma tempestade leva Eneias até a costa de Cartago. A rainha Dido o recebe e, sob a influência dos deuses, se apaixona profundamente por ele. Júpiter chama Eneias de volta ao seu dever e ele foge de Cartago. Dido comete suicídio e, como vingança, amaldiçoa Eneias. Ao chegar a Cumas, Eneias consulta a Sibila de Cumas, que o conduz pelo submundo e lhe revela seu destino.
Os deuses profetizam que ele fundaria uma cidade e uma linhagem destinada a dominar o mundo. Eneias se casará com Lavinia, filha do rei dos latinos e fundará a cidade de Lavinium. Ascânio, após a morte de Eneias, funda outra cidade, Alba Longa. Trezentos anos depois nasce o último rei de Alba Longa, Rômulo, o fundador de Roma.
A Eneida é um épico nacional de Roma que celebra a ascensão e a grandeza do Império Romano. É uma obra complexa e ambiciosa que explora temas como pietas (devoção) e glória, e tem sido estudada durante séculos por seu impacto na literatura e na cultura posteriores. A lenda de Eneias adquire um significado particular: Augusto era na verdade membro da gens Iulia, a família Julii, que afirmava ser descendente de Lulus, filho de Eneias.
Os troianos são imaginados como os ancestrais dos romanos e dos gregos e assumem o papel de inimigos que serão derrotados pelo Império Romano. Temos um povo grego subjugado, sim, mas que recebe o respeito dos romanos em relação à cultura e à civilização gregas.
Na Eneida, Virgílio incorpora sua Roma ideal e conta a história da fundação do primeiro assentamento na Itália, de onde em Roma surgiria um príncipe troiano exilado. Eneias foi apresentado como o protótipo do modo de vida romano, o último dos troianos e o primeiro dos romanos. Ao descrever as imagens no escudo do herói, Virgílio prenunciou acontecimentos reais da história romana.
Os primeiros seis livros são modelados na Odisseia, mas os últimos seis são a resposta romana à Ilíada. Eneias está noivo de Lavinia, filha do rei Latinus, mas Lavinia já havia sido prometida a Turnus, o rei dos rutulianos, que é incitado à guerra pela fúria Allecto. Na mitologia grega as erínias eram personificações da vingança. Enquanto Nêmesis (deusa da vingança) punia os deuses, as erínias puniam os mortais. Eram elas Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Inominável). Na mitologia romana, eram chamadas fúrias (Furiæ ou Diræ).
Virgílio segue a epopeia grega, porém, faz escolhas diferentes. Do ponto de vista da linguagem, opta por uma contaminação de gêneros e estilos, enquanto do ponto de vista do conteúdo tornam os gregos inimigos e mantém o respeito pelos romanos, considerados os precursores da civilização latina.
Na Eneida, acontece primeiro a viagem e depois a história da guerra. Ao contrário de Ulisses, ansioso por retornar à terra natal, Eneias navega em direção a uma nova cidade, que deverá ser construída e não destruída como foi Troia.
Eneias é muitas vezes guiado pela sua pietas, um valor inteiramente romano que o torna compassivo com o sofrimento humano, triste e dilacerado na sua alma, e sempre capaz de estabelecer por si mesmo como se comportar com base nos seus ideais, ao contrário de heróis gregos à mercê dos deuses e do destino.
No final do sexto livro, no submundo, passam diante de seus olhos as figuras de heróis da história romana, esperando o nascimento. O fantasma de seu pai (Anquises) descreve-os e termina definindo a missão romana como aquela preocupada com o governo e a civilização. “Governe o povo com o seu domínio, poupe os conquistados e combata os orgulhosos”.
Esta é a visão do destino de Roma que o imperador Augusto e o poeta Virgílio tiveram diante deles: que Roma foi divinamente designada a primeira a conquistar o mundo na guerra e depois a difundir a civilização e o Estado de direito entre os povos. Como Horácio disse aos romanos em uma de suas odes: “Porque vocês são servos dos deuses, vocês são senhores na terra”.
A visão de Roma que a Eneida expressa é nobre, mas a verdadeira grandeza do poema se deve à consciência de Virgílio dos aspectos privados, bem como dos aspectos públicos da vida humana. A Eneida não é uma apologia; coloca as conquistas e aspirações da gigantesca organização do governo romano em tensão com as esperanças frustradas e os sofrimentos dos indivíduos.
Dido, rainha de Cartago, oponente do modo de vida romano é a mais inesquecível e a única personagem criada por um poeta romano que passou para a literatura mundial. Num mero enaltecimento de Roma, ela poderia ter sido apresentada de tal forma que a rejeição dela por Eneias teria sido uma vitória aplaudida; mas, no quarto livro, ela conquista tanta simpatia que o leitor se pergunta se Roma deveria ser comprada por esse preço.
Mais uma vez, Turnus, que se opõe a Eneias quando este desembarca na Itália, resiste ao invasor que veio roubar sua noiva. É claro que ele é um personagem menos civilizado do que Eneias, mas em sua derrota Virgílio lhe permite ganhar muita simpatia. Esses são dois exemplos da tensão contra o otimismo romano.
As obras de Virgílio
As obras do primeiro período foram atribuídas a Virgílio, mas a autoria de muitas delas foi posteriormente questionada. As de sua autoria são apenas as quatro últimas.
֎ Em pedaços ֎ Focaccia ֎ Epigramas ֎ A senhoria ֎ Maldições ֎ A garça ֎ O mosquito ֎ Etna Apêndice Vergiliana ֎ Écoglas ou Bucólicas ֎ Geórgicas ֎ Eneida |
Conteúdo e significados da Eneida
O modelo homérico - a Eneida é dividida em doze livros. Os seis primeiros contam a história da queda de Troia e da viagem de Eneias à foz do Tibre; os últimos seis falam da guerra ocorrida no Lácio entre Eneias e a federação dos povos itálicos liderada por Turnus. Virgílio segue os poemas homéricos como modelos: a primeira metade da Eneida (uma história de viagem) é modelada na Odisseia, a segunda na Ilíada.
Tal como em Homero, os deuses participam da ação, ao lado de Eneias estão Vênus e Apolo; Juno, porém, está contra ele. Acima de tudo, está Júpiter: a sua vontade é identificada com o imutável Destino: foi ele quem decidiu que o povo romano, governante do mundo, deveria nascer da linhagem de Eneias.
A narrativa - o enredo, como o da Odisseia, não começa no início da história, mas em um momento mais avançado. A queda de Troia, a fuga de Eneias e a primeira parte da viagem serão contados pelo próprio Eneias nos livros II e III. No início do poema, os navios de Eneias já estão prestes a chegar ao Lácio, mas Juno desencadeia uma tempestade que empurra os troianos para Cartago, na costa da Tunísia, onde se encontra a rainha Dido, exilada da Fenícia.
Preocupada com o destino do filho, Vênus desperta em Dido a paixão por Eneias que, ao lado dela, esquece sua missão. Chamado à ordem por Júpiter, Eneias abandona Dido para reiniciar sua jornada. Desesperada, a rainha comete suicídio. Quando Eneias chega na região do Lácio, Juno reinicia a guerra e ajuda Turnus, mas a deusa se deixa convencer por Júpiter e no duelo final decide o destino da guerra.
A complexidade do significado - a Eneida não termina com um quadro de paz e esperança e sim num cenário de violência e morte que resume perfeitamente as contradições e a problemática de toda a obra. Virgílio não esconde a terrível tristeza e dor que a criação de um império traz consigo, e muitas vezes apresenta o seu herói, Eneias, como um guerreiro frio e insensível.
Últimos anos de Virgílio
Virgílio percebe a elevada responsabilidade que lhe foi atribuída e dedica-se de corpo e alma à sua tarefa durante dez anos, de 29 a.C.. a 19 a.C., despertando a impaciência de Otaviano, desejoso de que a obra ficasse pronta o mais rápido possível. Antes de concluir a Eneida, Virgílio vai à Grécia para conhecer a paisagem onde se desenrolaria parte das aventuras de Eneias. Durante a viagem contrai febre. Doente e exausto consegue chegar a Brindisi, onde morre, em 21 de setembro de 19 a.C., aos 52 anos. Os restos mortais do poeta foram transferidos para Nápoles, Varo e, finalmente, Tucca; porém, foram perdidos durante a Idade Média.
Conta-se que o próprio Virgílio ditou o seu epitáfio aos presentes:
“Mantua me genuit, Calabri rapuere, tenet nunc / Parthenope; cecini pascua rura duces” (Mântua me gerou, Salento me tirou a vida, agora Nápoles me preserva; cantei as pastagens, o campo, os heróis).
Insatisfeito com a sua obra, seu último desejo foi queimá-la, inacabada e com revisões a serem feitas. Augusto, porém, ordenou que os executores literários, Lucius Varius Rufus e Plotius Tucca, publicassem a obra com o mínimo possível de alterações. Por isso, o texto da Eneida existente pode conter falhas que Virgílio planejava corrigir antes da publicação, mas as únicas imperfeições óbvias são algumas linhas de versos metricamente inacabadas. Outras supostas "imperfeições" estão sujeitas a debate acadêmico.
Incompleta ou não, a Eneida foi imediatamente reconhecida como obra-prima. Proclamou a missão imperial do Império Romano, mas ao mesmo tempo retratou as baixas e a dor da expansão de Roma num império que abrangia o continente. Dido e Turnus, vítimas do destino de Roma, são figuras mais atraentes do que Eneias, cuja devoção obstinada ao seu objetivo pode parecer quase repulsiva ao leitor moderno.
O túmulo de Virgílio
O túmulo de Virgílio, localizado em Nápoles, é um local emblemático associado ao poeta romano. Situado no Parque Virgiliano, próximo à entrada de um antigo túnel romano, é envolto por uma atmosfera de mistério e reverência. Apesar de dúvidas sobre a autenticidade do sepulcro, a tradição sustenta que Virgílio desejou ser enterrado em Nápoles, cidade que ele amava profundamente. O local atraiu escritores e artistas ao longo dos séculos, sendo uma parada obrigatória para os românticos, como Goethe e Petrarca. O túmulo reflete o status imortal de Virgílio, sendo um símbolo de sua ligação com a eternidade da palavra poética. |
Logo após a publicação da Eneida, Virgílio foi reconhecido e de fato amado pelo povo romano. Ganhou o apelido de Homero Romano e transformou-se, sem o seu conhecimento, num ponto de comparação essencial para os poetas e escritores das épocas subsequentes ֎
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