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Petrônio - Árbitro de elegância

Atualizado: 4 de ago.



Caio Petronius Arbiter, mais conhecido pelo nome de Petronius (em português, Petrônio), foi um escritor e político romano do século I d.C. Existem muitas questões não resolvidas e obscuras a respeito dele, começando pela dúvida se ele é mesmo o autor da obra Satyricon (Satíricon).


O que se pode afirmar com certeza é que o autor viveu na época do imperador Nero, o que é confirmado pela própria obra. Nela, a sociedade da época de Nero é representada por meio do estilo, do conteúdo, da cultura e dos interesses de quem escreve sobre esse período. O sobrenome Arbiter (em português, Árbitro) lhe foi atribuído devido à sua fama como Árbitro Elegante, título que desfrutou na corte do imperador romano. A data de seu nascimento é incerta, mas sabe-se que ele morreu em 66 d.C.



Escritor e poeta latino de refinada elegância e ironia, Petrônio nos ajuda a compreender os verdadeiros valores e os falsos moralismos de sua época. Ele parece ter sido um homem muito rico e ter pertencido a uma família nobre. Em seu famoso romance ele usa mais de uma vez o número de trinta milhões de sestércios para indicar uma grande fortuna, sendo provável que estivesse se referindo a si mesmo. Pelos padrões romanos, era um homem de quem se poderia esperar sólidas realizações.


Árbitro de Elegância do imperador Nero


Após seu mandato como cônsul, Petrônio foi recebido por Nero em seu círculo mais íntimo como seu Árbitro de Elegância (Árbiter Eleganteiae), cuja palavra em todas as questões de gosto era lei. É a partir desse título que o epíteto “Árbitro” foi associado ao seu nome. Isso ocorreu nos últimos anos do império de Nero em uma carreira de extravagâncias imprudentes que chocaram a opinião pública quase mais do que os crimes reais dos quais ele era culpado.


Relatos nos Anais de Tácito


Públio Cornélio Tácito (em latim Publius [Gaius] Cornelius Tacitus) foi um dos mais importantes historiadores romanos da Antiguidade, nascido no ano 55 e falecido entre os anos 117 e 120. Atuou também como cônsul, governador e senador durante o Império Romano. Destacou-se pela escrita de várias obras biográficas, históricas e etnográficas, entre elas os Anais de Tácito.


Os Anais foram a obra final de Tácito. Ele escreveu ao menos 16 livros, mas os livros de 7 a 10 perderam-se, bem como parte dos livros 5, 6, 11 e 16. O livro 6 é encerrado com a morte de Tibério e os livros do 7 ao 12 cobrem presumivelmente os governos de Calígula e de Cláudio. Os demais livros tratam do governo de Nero, provavelmente até a sua morte em junho de 68, ou até o final desse ano, para depois se juntar às Histórias.


A segunda parte do livro 16 perdeu-se (termina narrando os eventos de 66). Não se sabe se Tácito completou a obra ou decidiu terminá-la antes de outros trabalhos que planejasse escrever pois ele faleceu antes de poder trabalhar nas histórias de Nerva e Trajano, do período de Augusto e os começos do Império, que havia prometido escrever.


É nos Anais de Tácito que aparece o relato mais completo e mais autêntico da vida de Petrônio, relato que pode ser complementado, com cautela, por outras fontes. É provável que o seu nome correto fosse Titus Petronius Niger. O relato de Tácito mostra que Petrônio pertencia a uma classe de buscadores de prazer atacados pelo filósofo estoico Sêneca, homens que “transformaram a noite em dia”. Enquanto outros conquistaram reputação pelo esforço, Petrônio o fez pela ociosidade.


Nas raras ocasiões, porém, em que foi nomeado para cargos oficiais, mostrou-se enérgico e totalmente à altura das responsabilidades públicas. Ele serviu como governador da província asiática da Bitínia e mais tarde, provavelmente em 62 ou 63, ocupou o alto cargo de cônsul, ou primeiro magistrado de Roma.


Os estudiosos atuais concordam em datar sua obra Satíricon do século I d.C. e atribuir sua paternidade a Petrônio, aquele que Tácito citou nos Anais como "árbitro elegante", um homem culto, refinado, agradável, espirituoso e amante do prazer que, graças a essas qualidades, foi um dos poucos amigos íntimos de Nero.


O que fez Nero apreciá-lo foi o seu refinamento, o seu gosto estético. Ele vivia na corte como um grande senhor, dormia durante o dia e dedicava a noite aos prazeres e trabalhos raros, que não amava, adorando antes o luxo e a elegância, mas também os vícios. Se outros chegaram à fama pelo trabalho, ele adquiriu-a pela sua vida descuidada.


Não tinha, porém, a reputação de desregrado ou de esbanjador, como a maioria dos dissipadores, mas a de um libertino refinado em sua arte. A própria negligência, o abandono que se notava nas suas ações e nas suas palavras, davam-lhe um ar de simplicidade, emprestando-lhe um valor novo. Voltando aos seus vícios ou à imitação calculada dos vícios, foi admitido entre os poucos íntimos de Nero e tornou-se na corte o árbitro do bom gosto: nada mais delicado, nada mais agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava a Nero, sempre embaraçado na escolha.



Ambiente na Corte de Nero


Petrônio, na corte de Nero, era um personagem de um mundo cheio de contrastes. Entre os muitos estudiosos interessados no assunto houve inclusive opiniões divergentes, mas o parecer mais acertado parece ter sido o do estudioso latinista italiano Concetto Marchesi (1878 - 1957), professor nas universidades de Messina, Pisa e Pádua, editou edições de Apuleio, Ovídio e Arnóbio; é autor de monografias sobre Marcial (1914), Sêneca (1921), Juvenal (1922), Fedro (1923), Tácito (1924), Petrônio (1940) e de uma importante História da literatura latina (1925-27):


Petrônio, nos últimos momentos da vida, teria acrescentado alguma página ao seu romance, enviando-a ao imperador, feroz e desequilibrado, como presente de uma vítima aristocrática e refinada. O filósofo Sêneca enviou alguma página de moral; Petrônio, a pintura e a descrição daquele mundo terrivelmente corrupto”.


Mesmo fragmentado, o que ficou do Satíricon basta para considerar as páginas de Petrônio como um monumento literário de incomparável beleza artística e de inestimável valor para a reconstrução da vida particular da antiga Roma.


A inveja de Tigelino


Caio Ofónio Tigelino, também conhecido como Ofónio Tigelino ou simplesmente Tigelino, foi um político romano, provavelmente de ascendência grega. Embora de origem humilde, chegou a ser prefeito do pretório, comandante da guarda pretoriana e poderoso conselheiro de Nero. Tigelino receava um concorrente mais hábil do que ele na ciência da volúpia. Conhecendo a crueldade do imperador, sua qualidade dominante, Tigelino denunciou Petrônio, em 66, como tendo sido implicado numa conspiração do ano anterior para assassinar Nero e colocar um rival no trono imperial. Depois subornou um delator entre os escravos do acusado.


Os membros da família de Petrônio foram presos e a ele foi vedada qualquer defesa. O imperador encontrava-se então na Campânia e Petrônio tinha acompanhado Nero até Cumas, no sul da Itália, onde recebeu ordem de lá permanecer. Embora inocente, Petrônio não esperou pela sentença inevitável e fez seus próprios preparativos para a morte.


Suicídio sem pressa


Sabendo que o seu destino já estava selado, ele repeliu tanto o temor quanto a esperança, mas não quis se afastar bruscamente da vida. Abriu as veias, fechou-as depois, abrindo-as novamente ao sabor da sua fantasia, falando aos amigos e ouvindo por sua vez. Nada havia de grave nas suas palavras, nenhuma ostentação de coragem; não quis ouvir reflexões sobre a imortalidade da alma, nem sobre as máximas dos filósofos. Pediu que fossem lidos somente versos zombeteiros e poesias ligeiras.


Petrônio ecompensou alguns escravos e mandou castigar outros; chegou a passear, entregou-se ao sono a fim de que sua morte, ainda que provocada, parecesse natural. No seu testamento não adulou Nero ou Tigelino ou qualquer outro poderoso do dia, como fazia a maioria dos que pereciam. Mas, em nome de jovens impudicos ou de mulheres perdidas, narrou as devassidões do imperador e os seus refinamentos; mandou o escrito a Nero, fechado, imprimindo-lhe o sinete de seu anel, que destruiu a fim de que não fizesse vítimas mais tarde.


Satíricon, a Grande Obra de Petrônio


A obra Satíricon, romance que inspirou o belo filme de Fellini, é um poema narrativo de uma obra em prosa muito maior. Romance cômico e picaresco é relacionado a vários gêneros literários antigos. Em estilo, varia entre o altamente realista e o conscientemente literário, sua forma é episódica.




Como a vida de Petrônio, sua obra também apresenta inúmeros problemas, a partir da data de composição. O Satíricon começou a ser citado no século III d.C., antes que houvesse consenso em atribuí-lo a Petrônio. Mesmo o título não era único, às vezes referido como Saturae. Com a palavra Saturae pode-se ligar a escrita às Sátiras Menipeias, sublinhando a mistura entre prosa e poesia. Quanto às diversas opiniões, a mais credenciada prevê que se trata, ainda que de forma única, de um romance e talvez de uma paródia do romance grego helenístico que inverte seu realismo bruto e seus aspectos sentimentais.


A estrutura narrativa flexível abrange uma série de contos independentes, sendo um exemplo clássico a famosa Viúva de Éfeso (Satíricon, cap. 111-112). Outras características, porém, lembram a sátira Menipeia. Essas características incluem a mistura de prosa e verso em que a obra é composta e as digressões,  quando o autor expõe seus próprios pontos de vista sobre diversos temas que não têm ligação com a trama.


Todo o livro XV e partes dos livros XIV e XVI sobreviveram. A primeira reimpressão completa de todos os seus fragmentos data de 1669. No entanto, sabemos que partes da obra eram conhecidas em 1420, graças à obra de Poggio Bracciolini, que encontrou várias partes espalhadas pela Europa. Em 1423 Bracciolini encontrou em Colônia o episódio central da obra, a famosa Cena Trimalchionis, O melhor e mais longo episódio nas partes sobreviventes do Satíricon. Também inclui algumas inserções de contos e algumas passagens de poesia; os mais longos são Bellum civili (A guerra civil) e Troiae halosis (Tomada de Troia).


Enccò, o protagonista do romance, conta, na primeira pessoa, as aventuras de uma viagem feita ao sul da Itália junto com seu amante Gitone e com o jovem Ascilto. Entre muitos acontecimentos, os três amigos são convidados para um banquete na casa de Trimalchio (Trimalquio), onde encontrarão outros personagens da mesma posição social e da mesma grosseria do dono da casa.


O Banquete de Trimalchio


É a descrição de um jantar oferecido por Trimalchio, um ex-escravo imensamente rico e vulgar, a um grupo de amigos e parasitas. A duração do episódio parece desproporcional até mesmo ao suposto tamanho original da obra e tem pouca ou nenhuma conexão aparente com a trama. O cenário é uma cidade greco-romana na Campânia, e os convidados, na sua maioria libertos como o seu anfitrião, provêm do correspondente à classe pequeno-burguesa.


Trimalchio é a quintessência do interesseiro, uma figura bastante familiar na literatura satírica antiga, mas especialmente no século I d.C., quando os libertos como classe eram mais influentes. Quintessência (quinta essência) é uma alusão à Aristóteles, que considerava que o universo era composto de quatro elementos principais - terra, água, ar e fogo -, mais um quinto elemento, uma substância etérea que permeava tudo e impedia os corpos celestes de caírem sobre a Terra.


Duas características distinguem o Banquete de outros exemplos antigos: seu extraordinário realismo e a figura de Trimalchio. É óbvio que a conversa à mesa dos convidados do Banquete se baseia na observação pessoal do autor sobre as sociedades provinciais. Os oradores são caracterizados de forma bela e precisa e o seu diálogo, independentemente da evidência inestimável do latim coloquial proporcionado pelos vulgarismos e solecismos em que abunda, é uma obra-prima humorística.


Trimalchio, uma das Grandes Figuras Cômicas da Literatura


O próprio Trimalchio, com a sua vasta riqueza, a sua ostentação de mau gosto, a sua afetação da cultura, a sua superstição e os seus lapsos sentimentais na sua vulgaridade natural, é mais do que a figura de um típico satírico. Conforme retratado por Petrônio, ele é uma das grandes figuras cômicas da literatura e é uma companhia adequada para o Falstaff, de Shakespeare.


O desenvolvimento do personagem por si só era pouco conhecido na literatura antiga. A ênfase estava sempre no típico, e as regras clássicas estabelecidas para esse personagem eram secundárias em relação a considerações mais importantes, como o enredo. Petrônio, no seu tratamento de Trimalchio, transcendeu essa limitação quase universal de uma forma que lembra irresistivelmente Charles Dickens, e muito mais no Banquete é dickensiano – a sua exuberância, o seu humor turbulento (raro na literatura antiga, onde predomina a inteligência), e sua amorosa profusão de detalhes.


O resto do Satíricon dificilmente pode ser comparado ao Banquete de Trimalchio. Na medida em que qualquer atitude moral é perceptível na obra quase completa, trata-se de um tipo trivial e degradado de hedonismo. O hedonismo se refere a um grupo de teorias onde o prazer desempenha papel central e  o comportamento humano é determinado por desejos de aumentar o prazer e diminuir a dor.


O objetivo do Satíricon era acima de tudo entreter, retratando certos aspectos da sociedade contemporânea. Quando considerado como tal, o livro é de imenso valor: detalhes superficiais da fala, comportamento, aparência e entorno dos personagens são observados com exatidão e vividamente comunicados.


Características do Estilo de Petrônio


Como já mencionado, Petrônio realiza em sua obra um trabalho de sátira e paródia. O romance grego helenístico é tomado como modelo juntamente com suas características fundamentais (aventuras, viagens, amor), mas no Satíricon tudo é virado de cabeça para baixo. A certa altura, os dois protagonistas se separam e a partir daí começam os vários contratempos na jornada dos dois até a intervenção de algo que os aproxime. O estilo simples do romance caiu nas boas graças de grande parte do público.


O que é distorcido por Petrônio? O casal, por exemplo, que nos romances típicos era casto e heterossexual enquanto nos de Petrônio é homossexual e tudo menos medroso e fiel. A viagem, por sua vez, é de natureza da viagem de Odisseu, mas repleta de uma paródia do mundo épico. Odisseu ou Ulisses foi, na mitologia grega e na mitologia romana um personagem da Ilíada e da Odisseia, de Homero. Petrônio faz uma crítica à vida contemporânea em qualquer um dos seus aspectos como, por exemplo, o da escola de retórica que, segundo o escritor, não levava os alunos a discutir nada.


A riqueza de alusões específicas a pessoas e acontecimentos da época de Nero mostra que a obra se dirigia a um público contemporâneo, e certas características sugerem que o público consistia de fato em Nero e nos seus cortesãos. As descrições realistas da vida baixa lembram o gosto do imperador pelas expedições aos bairros pobres.


A combinação de sofisticação literária com obscenidade polida é consistente com o desejo de excitar o paladar cansado de uma corte debochada. Se o livro de Petrônio tem uma mensagem, ela é mais estética do que moral. A ênfase ao longo do relato do banquete de Trimalchio está no contraste entre gosto e mau gosto. Estilisticamente, também, Satíricon é o que o relato de Tácito sobre o autor nos levaria a esperar.


A linguagem da narrativa e dos oradores educados é pura, fácil e elegante, e a inteligência das melhores passagens cômicas é brilhante; mas a impressão geral, mesmo quando se leva em conta o estado fragmentário do texto, é a de um livro escrito rápida e um tanto descuidadamente por um escritor que não se daria ao trabalho necessário para disciplinar seus surpreendentes poderes de invenção. Em seu livro, como em sua vida, Petrônio alcançou fama pela indolência.


“Não devemos confiar muito em planos pré-estabelecidos, porque a sorte segue uma lógica própria, que está longe de coincidir com a nossa” (Petrônio)


Quo Vadis – Aonde vais?


Na minha proposta de apresentar autores gregos e romanos e a influência deles no Classicismo, o texto desta semana seria sobre Virgílio; porém, impulsionado pela minha leitura do livro Quo Vadis, alterei meus planos. E vocês vão entender o porquê.




Na Roma de Nero, o jovem Vinícius se apaixona perdidamente pela misteriosa Lígia. Os dois, porém, pertencem a mundos diferentes: ele é patrício e sobrinho de Petrônio, um dos favoritos de Nero; ela, cristã e filha de um rei suevo. Eles só poderão se casar se ele aceitar a fé dos Apóstolos. “Quo Vadis” é uma expressão latina que significa “Aonde vais?” e teria sido dita por Pedro a Jesus, que lhe apareceu na Via Ápia, quando este fugia da perseguição de Nero em Roma, onde seria crucificado.


Ao narrar essa história de amor, o autor polonês Henryk Sienkiewicz (1846 – 1916) conduz o leitor pelos eventos históricos mais importantes da época, desde o incêndio que deflagrou Roma até os jogos sangrentos do circo, pintando todo o cenário de contraste entre a aristocracia romana, com seus excessos e frivolidades, e os primeiros cristãos, perseguidos e martirizados. Quo Vadis rendeu a Henryk Sienkiewicz o Prêmio Nobel de Literatura de 1905.


Como já pôde ser visto neste texto, a vida de Petrônio apresenta lacunas assim como sua obra que chegou até nós de forma incompleta. O que me impressionou bastante no livro de Sienkiewicz foi o personagem Petrônio e a sua relação com Nero. Diferente de todos os que circundavam o imperador, principalmente Tigelino, Petrônio não bajula nem receia falar a verdade para o egocêntrico imperador que se julga um grande artista e não admite ser questionado.


Do começo ao fim, Petrônio mantém seu comportamento mesmo quando tenta salvar seu sobrinho e a jovem Lígia da ira do anticristo. Arrisca-se calculadamente e reconhece quando é vencido. Reconhece, mas não é subjugado nem na morte, um suicídio lento, nobre e altivo. A carta que envia a Nero é seu último ato, não de rebeldia e sim de dignidade:


“Sei, divino Cesar, que me aguardas com impaciência e que, na fidelidade do teu coração, sentes a minha falta dia e noite. Sei que me cumularias de favores, que me ofereceria o lugar de prefeito da tua guarda e que nomearias Tigelino guarda das mulas nas terras que, após o envenenamento de Domiciano, herdaste, cargo para o qual parece ter sido criado pelos deuses.


Infelizmente, porém, terás de escusar-me. Por Hades, e em especial pelos manes de tua mãe, de tua mulher, do teu irmão e Sêneca, juro-te que me é impossível ir ter contigo. A vida é um tesouro, meu amigo, e eu orgulho-me de ter retirado desse tesouro as joias mais preciosas. Mas na vida há coisas que me confesso incapaz de suportar por mais tempo.


Não vás pensar, peço-te, que me repugna o assassínio de tua mãe, do teu irmão, que fiquei indignado com o incêndio de Roma, que me sinto ultrajado pelo processo que consiste em enviar para o Érebo todas as pessoas honestas do teu império...

Pois bem! Não, meu caro neto de Cronos! A morte é herança comum dos seres sublunares e, de resto, não era possível esperar ver-te agir de outro modo.


Porém, e durante longos anos ainda, ter os ouvidos torturados pelo teu canto, ver as tuas pernas domicianas – as tuas estacas – agitarem-se na dança púrica, ouvir-te tocar, ouvir-te declamar, ouvir-te dizer poemas da tua autoria, pobre poeta dos arrabaldes!... Ah, sinceramente, semelhante perspectiva estava acima das minhas forças.


E senti em mim a incoercível necessidade de juntar-me a meus pais. Roma tapa as orelhas, o universo cobre-te de ridículo. E eu não quero continuar a corar por ti. Não quero, nem posso! Os uivos de Cérbero, se bem que semelhantes ao teu canto, meu amigo, ser-me-ão mais suportáveis, pois nunca fui amigo do referido Cérbero e portanto não terei o dever de envergonhar-me pela sua voz.


Cuida-te bem, mas deixa o canto; mata, mas não faças mais versos; envenena, mas deixa de dançar; incendeia cidades, mas abandone a cítara. Tal é o último desejo e o amistoso conselho que te envia o

Árbitro da Elegância.

 



Percebam que Petrônio calculadamente atinge Nero não pela infinidade de crimes por ele cometido e sim pelo deboche e condenação dos medíocres dotes artísticos do imperador. Nero, realmente suportaria todas as acusações de seus crimes, mas não a desaprovação realista do único a quem ele dava ouvidos. Não menos tocante é a narração da sua morte, como pode ser visto neste trecho:


“... Terminado o hino, Petrônio mandou oferecer novos pratos e novos vinhos. Depois pôs-se a conversar com os vizinhos a respeito dos mil nadas pueris e encantadores habituais dos festins. Por fim chamou o grego e mandou-o ligar a artéria, pois tinha sono e queria abandonar-se ainda uma vez mais a Hypnos antes que Thanatos o adormecesse para sempre. E adormeceu.


Ao despertar, a cabeça de Eunice repousava, como uma flor branca, sobre o seu peito. Apoiou-a no coxim, para a contemplar uma vez mais. E o médico abriu-lhe novamente a artéria.


Os cantores entoaram de novo o hino de Anacreão, enquanto os alaúdes tocavam em surdina, para não abafar as palavras. Petrônio empalidecia gradualmente. Quando morreu a última nota, voltou-se para os convidados:


- Amigos, concordai que conosco perece...

Não pôde terminar. Num gesto supremo, o seu braço enlaçou Eunice e a cabeça caiu-lhe para o peito.


E os convivas, diante daquelas duas formas brancas, semelhantes a estátuas maravilhosas, sentiram  que parecia o último apanágio do mundo romano, a sua beleza e a sua poesia.”


Eunice foi sua escrava e devotada companheira para quem ele deixaria todos os seus bens, mas que recusou preferindo morrer junto com ele. Morrer aos seus braços.


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