Michel de Montaigne (Michel Eyquem de Montaigne), foi um filósofo, escritor e humanista francês considerado o inventor do gênero ensaio pessoal quando publicou sua obra Ensaios, em 1580. Nela, escreveu um dos autorretratos mais cativantes e íntimos já feitos, a par dos de Santo Agostinho e de Rousseau. Ele foi influenciado por diversas correntes filosóficas, sobretudo pelo Humanismo Renascentista.
O escritor e filósofo Michel de Montaigne nasceu no Castelo de Montaigne, em Saint-Michel-de-Montaigne, na região de Bordeaux, na França. Quando criança todos os seus familiares falavam com ele apenas em latim. O menino só foi aprender francês aos seis anos de idade, quando foi internado no Collège de Guyenne, em Bordeaux. Não está claro onde nem se Montaigne estudou Direito. A única coisa que se sabe com certeza é que seu pai lhe comprou um escritório no Tribunal de Périgueux.
Contexto Histórico
Vivendo na segunda metade do século XVI, Montaigne testemunhou o declínio do otimismo intelectual que marcou o Renascimento. A Reforma calvinista seguida de perto pela perseguição religiosa e pelas Guerras de Religião (1562-1598) abalou as imensas possibilidades humanas, decorrentes das descobertas dos viajantes do Novo Mundo, da redescoberta da Antiguidade clássica e da abertura de horizontes acadêmicos por meio das obras dos humanistas. Esses conflitos foram de fato guerras políticas e civis, além de religiosas, marcadas por grandes excessos de fanatismo e crueldade.
O Livre Julgamento
Montaigne realizou a revolução humanista na filosofia. Ele passou de uma concepção de filosofia concebida como ciência teórica, para uma filosofia projetada como a prática do livre julgamento. Lamentando que "a filosofia, mesmo para os entendidos, seja um nome vazio e fantástico, uma coisa sem utilidade e sem valor!, afirmava que a filosofia deveria ser a atividade mais alegre. Ele praticou a filosofia pondo à prova o seu juizo, para tomar consciência das suas fraquezas, mas também para conhecer a sua força. "Cada movimento nos revela", mas os nossos julgamentos o fazem melhor.
As Ideias de Michel de Montaigne
Sob a influência de seu amigo La Boétie, o Montaigne adota a pretensão estoica de alcançar a verdade absoluta. Porém, seu espírito convive mais com a dúvida, e a experiência estoica certamente marcou, para sempre, a ruptura de Montaigne com qualquer ideia de verdade absoluta. O estoicismo foi uma escola e doutrina filosófica surgida na Grécia Antiga, que prezava a fidelidade ao conhecimento e o foco em tudo aquilo que pode ser controlado somente pela própria pessoa, desprezando todos os tipos de sentimentos externos, como a paixão e os desejos extremos.
Montaigne também foi seduzido pelos filósofos do ceticismo, doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento intelectual de dúvida permanente e na abdicação de uma compreensão metafísica, religiosa ou absoluta do real. Segundo esses filósofos, se o homem não sabe nada de si mesmo, como pode saber tanto sobre o mundo e sobre Deus e sua vontade? A dúvida é, para Montaigne, uma arma contra o fanatismo religioso.
Educação Para o Entendimento e Para a Consciência
Montaigne considerava que a educação deveria criar seres humanos voltados para a investigação e conclusões, ao mesmo tempo que eles exercitassem a mente para um posicionamento crítico do indivíduo. Nas palavras do filósofo: cuidamos apenas de encher a memória, e deixamos vazios o entendimento e a consciência. O ensino deveria estar atrelado ao empirismo, doutrina segundo a qual todo conhecimento provém unicamente da experiência, limitando-se ao que pode ser captado do mundo externo, pelos sentidos, ou do mundo subjetivo, pela introspecção, ou seja, por meio de experiências práticas.
Educação dos Filhos
Refletindo sobre a educação dos filhos da aristocracia, Montaigne afasta-se significativamente de uma educação humanista tradicional, a mesma que ele próprio recebeu. A criança se conformará cedo aos costumes sociais e políticos, mas sem servilismo. O uso do julgamento em todas as circunstâncias, como garantia de inteligência prática e liberdade pessoal, deve permanecer no centro da educação. Ele transfere a grande responsabilidade da educação da escola para a vida cotidiana: "pode-se obter um brilho maravilhoso para o julgamento humano conhecendo os homens". A prioridade dada à formação do juizo e do caráter se opõe fortemente ao anseio por uma memória poderosa durante seu tempo.
O esquema de memorização e o uso dos livros, baseado na cultura livresca do Renascimento, afastaria os alunos do conhecimento. Na cultura livresca, os estudantes não aprenderiam de forma rápida e ainda, não teriam prática para solucionar diversos assuntos de suma importância, ligados ao desenvolvimento humano e à moral.
No domínio da educação, deve-se respeitar a personalidade da criança para se formar um homem honesto e capaz de refletir por si mesmo. Esse homem deverá procurar o diálogo com os outros, tendo senso de relatividade sobre todas as coisas. Assim, ele conseguirá se adaptar à sociedade onde deverá viver em harmonia com os outros homens e com o mundo. Ele será um espírito livre e liberto de crenças e superstições.
Comportamento Humano
Montaigne inicia seu projeto de conhecer o homem percebendo que o mesmo comportamento humano pode ter efeitos opostos, ou que mesmo condutas opostas podem ter os mesmo efeitos: "por diversos meios chegamos ao mesmo fim". A vida humana não pode ser transformada em objeto de teoria racional. A conduta humana não obedece a regras universais, mas a uma grande diversidade de regras, dentre as quais as mais precisas ainda ficam aquém do alvo pretendido. "A razão humana é uma tintura infundida com força aproximadamente igual em todas as nossas opiniões e maneiras, qualquer que seja sua forma: infinita em substância, infinita em diversidade", diz o capítulo sobre o costume.
Ceticismo Combinado com o Desejo da Verdade
Tendo em mente a época de dissimulação, corrupção, violência e hipocrisia em que viveu, não é surpresa que o ponto de partida dos Ensaios esteja situado na negatividade, a negatividade do reconhecimento de Montaigne da regra das aparências e da perda de conexão com a verdade do ser.
O ceticismo de Montaigne está refletido no título francês de sua obra, Essais, ou Tentativas, que implica não uma transmissão de conhecimento comprovado ou de opinião confiante, mas um projeto de tentativa e erro. Nem uma referência a um gênero estabelecido nem uma indicação de uma necessária unidade interna e estrutura dentro da obra. O título indica uma atitude intelectual de questionamento e de avaliação contínua.
Seu ceticismo não exclui a crença na existência da verdade, mas constitui uma defesa contra o perigo de localizá-la em noções falsas, não examinadas e impostas externamente. Isso leva à rejeição de ideias comumente aceitas e a uma profunda desconfiança de generalizações e abstrações; também mostra o caminho para uma exploração do único reino que promete certeza: o dos fenômenos concretos e, principalmente, o fenômeno básico de seu próprio “eu” corpo e mente.
Esse eu, com todas as suas imperfeições, constitui o único lugar possível onde a busca da verdade pode começar, e é por isso que Montaigne não deixa de afirmar que eu sou eu mesmo a matéria do meu livro. Ele descobre que sua identidade, sua “forma mestra”, como ele a chama, não pode ser definida em termos simples de um eu constante e estável, pois é algo mutável e fragmentado, e que a valorização e aceitação desses traços é a única garantia de autenticidade e integridade, a única maneira de permanecer fiel à verdade de seu ser e de sua natureza e não a aparências estranhas.
No entanto, apesar de sua insistência de que o eu guarde sua liberdade em relação às influências externas e à tirania dos costumes e opiniões impostas, Montaigne acredita no valor de ir além do eu. De fato, ao longo de seus escritos, como fez em sua vida privada e pública, ele manifesta a necessidade de manter vínculos com o mundo das outras pessoas e dos acontecimentos.
Para esse ir e vir necessário entre a interioridade de si e a exterioridade do mundo, ele utiliza a imagem da sala e do quarto dos fundos: o ser humano tem uma sala de frente para a rua, onde se encontra e interage e um quarto dos fundos. Ele precisa sempre recuar para o quarto dos fundos do eu mais privado, onde pode reafirmar a liberdade e a força da identidade íntima e refletir sobre os caprichos da experiência.
Ensaio Como um Novo Gênero Literário
Em março de 1580, Michel de Montaigne publicou a primeira edição de Ensaios, constituída de dois livros divididos em 94 capítulos. Uma segunda edição foi publicada em 1582, e a terceira surgiu em 1588. Seu livro tornou-se uma das mais importantes e influentes obras do Renascimento e exerceu profunda influência sobre o pensamento moral europeu dos séculos XVII e XVIII.
A obra estabeleceu o ensaio como um novo gênero literário, onde o escritor faz reflexões pessoais e subjetivas sobre diversos temas, entre eles, a religião, a educação, a amizade, o amor, a liberdade, a guerra etc.
Conceitualmente, os Ensaios refletem os valores clássicos das correntes céticas, estoicas e epicuristas da filosofia helenística. O epicurismo foi a escola filosófica criada por Epicuro de Samos em meados do século IV a.C. Nela, ele afirma que, para atingir um estado de plena liberdade, tranquilidade e libertação do medo, o indivíduo deve manter-se em busca de prazeres moderados.
O Ceticismo de Montaigne
O exercício do julgamento de Montaigne é um exercício de "julgamento natural", o que significa que o julgamento não precisa de nenhum princípio ou regra como pressuposto. Dessa forma, muitos aspectos do seu pensamento podem ser considerados céticos, embora não tenham sido usados para fins de ceticismo. Por exemplo, quando Montaigne estabelece o exercício da dúvida como um bom começo na educação, ele entende a dúvida como parte do processo de formação do juízo. Esse processo deve conduzir à sabedoria, caracterizada como "sempre alegre". O ceticismo de Montaigne não é desesperado, ao contrário, oferece ao leitor uma espécie de júbilo que se baseia no prazer modesto, mas eficaz, de dispensar o conhecimento, abrindo espaço para o exercício das faculdades naturais.
Ele deu esse nome porque a obra não era ciência nem literatura, apenas opiniões pessoais. Reunida em três volumes, foi a única obra publicada por ele sendo considerada um marco para o nascimento do gênero ensaio pessoal. Os artigos que merecem destaque são: Dos canibais, Sobre a Vaidade, Sobre a Amizade, Dos livros e Jornal de Viagem.
Montaigne e o Relativismo
Os pensadores renascentistas sentiram fortemente a necessidade de revisar seu discurso sobre o homem. Mas ninguém acentuou mais essa necessidade do que Montaigne: o que ele procurava, ao ler historiadores ou viajantes como a História das Índias, de Lopez de Gomara, era a maior variedade de crenças e costumes que enriquecessem sua imagem do homem. Nem o sábio helenístico, nem o santo cristão, nem o erudito renascentista são modelos inquestionáveis nos Ensaios. Em vez disso, Montaigne está considerando homens reais, que são o produto dos costumes.
A Europa Ocidental Mais Bárbara do que o Novo Mundo
Montaigne estende sua curiosidade sobre os outros aos habitantes do Novo Mundo, que conheceu por meio de seu vivo interesse por relatos de viagens orais e escritos e por meio de seu encontro, em 1562, com três índios brasileiros que o explorador Nicolas Durand de Villegagnon trouxe de volta para a França.
Dando um exemplo de relativismo e tolerância cultural ele encontra essas pessoas, na fidelidade à própria natureza e na dignidade cultural e pessoal e no senso de beleza, muito superiores aos habitantes da Europa Ocidental que, nas conquistas do Novo Mundo e em suas próprias guerras internas, se mostraram os verdadeiros bárbaros. O sofrimento e a humilhação impostos aos nativos do Novo Mundo por seus conquistadores provocaram sua indignação e compaixão.
Meditação Completamente Original Sobre Si Mesmo
Embora tenha sido, ao que parece, um católico romano leal, se não fervoroso, Montaigne desconfiava de todas as pretensões humanas de conhecimento de uma experiência espiritual que não está ligada a uma realidade concretamente vivida. Ele se recusou a especular sobre uma transcendência que está além do conhecimento humano, acreditando em Deus, mas recusando-se a invocá-lo de maneiras necessariamente presunçosas e redutivas.
Apesar de conhecer os filósofos clássicos, suas ideias brotam menos dos ensinamentos deles do que de uma meditação completamente original sobre si mesmo, que ele estende a uma descrição do ser humano e a uma ética de autenticidade, autoaceitação e tolerância. Os Ensaios são o registro de seus pensamentos, apresentados não em estágios organizados artificialmente, mas como eles ocorreram e se repetiram em diferentes formas ao longo de sua atividade de pensamento e escrita.
Os Ensaios incorporam um profundo ceticismo em relação às pretensões perigosamente infladas do ser humano ao conhecimento e à certeza, mas também afirmam que não há maior conquista do que a capacidade de aceitar o próprio ser sem desprezo ou ilusão, na plena realização de suas limitações e de sua riqueza.
Leitores de Montaigne
Nem todos os seus contemporâneos manifestaram o entusiasmo de Marie de Gournay, que desmaiou de excitação na primeira leitura dos Ensaios. Ela reconheceu no livro toda a força de uma mente incomum se revelando, mas a maioria dos intelectuais do período preferiu encontrar em Montaigne uma reencarnação segura do estoicismo.
Costume | Prática do julgamento |
O costume é uma espécie de bruxa, cujo feitiço, entre outros efeitos, lança ilusão moral. "As leis da consciência, que dizemos nascem da natureza, nascem do costume. Cada homem, mantendo uma veneração interior as opiniões e os comportamentos aprovados e aceitos ao seu redor, não pode se desvencilhar deles sem remorso, ou aplicar-se a eles sem satisfação própria." O poder do costume, de fato, não apenas orienta o homem em seu comportamento, mas também o convence de sua legitimidade. O que é crime para uma pessoa parecerá normal para outra. | O homem está em toda parte escravizado pelo costume, mas isso não significa que devemos aceitar o entorpecimento de nossa mente. Montaigne elabora uma pedgogia, que se baseia na própria prática do julgamento. A tarefa do aluno não é repetir o que o mestre disse, mas sobre determinado assunto do problema, confrontar o seu julgamento com o do mestre. Além disso, as leituras dos Ensaios são forçadas a ignorar certas passagens que carregam um tom mais racionalista. " O violento prejuízo infligido pelo costume (I,23) certamente não é um elogio ao costume, mas um convite a fugir dele. |
Michel de Montaigne continua a ser estudado em todos os aspectos de seu texto por muitos estudiosos e a ser lido por pessoas de todos os cantos da terra. Em uma época que pode parecer tão violenta e absurda quanto a dele, sua recusa à intolerância e ao fanatismo e sua lúcida consciência do potencial humano de destruição, juntamente com sua crença na capacidade humana de autoavaliação, honestidade e compaixão, atrai tão convincente como sempre para muitos que encontram nele um guia e um amigo.
Elementos-chave da Filosofia de Montaigne
Montaigne conseguiu internalizar uma enorme amplitude de leitura, para que sua erudçião não apareça como tal. Ele criou uma obra muito singular, mas que permanece profundamente enraizada na comunidade de poetas, historiadores e filósofos. Sua decisão de usar apenas seu próprio julgamento para lidar com todos os tipos de assuntos, sua atitude resolutamente distante em relação à memória e ao conhecimento, sua advertência de que não devemos misturar Deus ou princípíos transcendentes com o mundo humano, são alguns dos elementos-chave que caracterizam a filosofia de Montaigne.
֎
Médicos Sem Fronteiras
Toda matéria ֎ Brasil escola ֎ Montaigne e os livros ֎ Britannica ֎ Encyclopedia of philosophy ֎ The New Yorker ֎ Biografías y vidas ֎ Filosofía y co ֎ Pscicología y mente
YouTube
A subjetividade do pensamento ֎ Ceticismo ֎ Os ensaios ֎ Montaigne - Ensaios ֎ The complete works of Montaigne ֎ Introduction to Montaigne ֎ The Philosophy of Montaigne
Comments